Sahul e os hobbits: o que a genética revela sobre a 1ª migração humana?

Um dos maiores debates da arqueologia e da paleoantropologia atuais, a chamada cronologia do povoamento de Sahul é um acalorado debate científico que tenta explicar quando e como os humanos modernos colonizaram esse antigo supercontinente que unia Austrália, Nova Guiné e Tasmânia durante a Era do Gelo.

Mais do que uma polêmica entre especialistas, a questão marca a primeira grande migração marítima da humanidade, a colonização mais antiga fora da África que deixou descendentes até hoje e um salto tecnológico sem precedentes, pois envolveu uma travessia de milhares de quilômetros desde a África até o outro extremo do planeta.

Duas cronologias tentam explicar essa chegada: uma “longa”, que propõe ocupação anterior há 60 mil anos com base em sítios arqueológicos antigos e linhagens genéticas profundas; e uma “curta”, que sugere migração por volta de 45–50 mil anos, apoiada em modelos genéticos mais recentes e calibrações alternativas do “relógio” genético.

Em uma pesquisa recente, publicada na revista Science Advances, uma equipe internacional de especialistas liderada por pesquisadores da Universidade de Huddersfield, no Reino Unido, se propõe a mapear, com a maior precisão já alcançada, a trajetória dos primeiros humanos modernos até Sahul.

Nesse sentido, os autores conseguiram reunir um volume impressionante de dados genéticos: centenas de genomas mitocondriais (herdados pela linhagem materna), análises de DNA antigo, reconstruções de linhagens do cromossomo Y, e modelos estatísticos refinados. Eles apostam em uma cronologia longa, há cerca de 60 mil anos.

Um encontro com Hobbits?

Os Hobbits podem ter chegado à ilha das Flores levados por um desastre natural, como um tsunami• Cícero Moraes, Luca Bezzi, Alessandro Bezzi, Figshare, 2023/Divulgação
Os Hobbits podem ter chegado à ilha das Flores levados por um desastre natural, como um tsunami• Cícero Moraes, Luca Bezzi, Alessandro Bezzi, Figshare, 2023/Divulgação

Para construir a árvore genealógica mais detalhada das populações da Nova Guiné Oriental, Austrália, ilhas do Pacífico e Sudeste Asiático, a equipe de pesquisa sequenciou 973 novos genomas mitocondriais completos — o DNA materno —, combinando-os com 1.483 genomas já publicados anteriormente.

Além de DNA moderno, os autores conseguiram extrair material genético de um esqueleto muito antigo: uma pessoa que viveu há 1.710 anos e cujos restos foram encontrados em uma caverna na ilha de Sulawesi, na Indonésia. Esse DNA pertencia a um haplogrupo (família genética) que aparece hoje na Nova Guiné.

Os dados genéticos analisados mostram que populações ancestrais da antiga massa continental Sunda — que incluía as atuais Indonésia, Filipinas e a Península da Malásia — viajaram até o paleocontinente de Sahul. Isso aconteceu no Pleistoceno, quando o nível do mar estava cerca de 120 metros mais baixo.

A travessia até Sahul exigia múltiplas navegações por trechos oceânicos abertos através de um vasto grupo de ilhas chamado Wallacea, situado na atual Indonésia e Timor-Leste. Essa região nunca esteve conectada por terra nem a Sunda, nem a Sahul, pois são separadas por fossas oceânicas profundas.

Embora Sahul não fosse ainda habitado por humanos modernos na época da travessia, os migrantes podem ter se encontrado, na ilha de Flores, com uma espécie humana minúscula (Homo floresiensis), apelidada de “Hobbits” pela equipe científica que fez a descoberta de seus fósseis em 2003.

Os dois ramos humanos que chegaram a Sahul

O mapa de Sunda e Sahul mostra que a viagem entre essas duas massas de terra sempre exigiu travessias marítimas intencionais • Helen Farr e Erich Fisher/Divulgação
O mapa de Sunda e Sahul mostra que a viagem entre essas duas massas de terra sempre exigiu travessias marítimas intencionais • Helen Farr e Erich Fisher/Divulgação

Embora não esteja claro se os pioneiros humanos de Sunda interagiram com os hobbits arcaicos da região, “nossos resultados indicam que os aborígenes australianos, junto com os neoguineenses, têm a ancestralidade mais antiga e ininterrupta de qualquer grupo de pessoas fora da África”, afirma o coautor Martin Richards à Live Science.

Segundo o arqueogeneticista, ambos os grupos que entraram em Sahul descendiam de uma mesma população que saiu da África há cerca de 70-80 mil anos. Durante sua jornada pelo Sul e Sudeste Asiático, ela se separou em dois ramos distintos, entre 10 e 20 mil anos antes de os ancestrais humanos alcançarem a Austrália por rotas distintas.

Ou seja, os dois grupos que depois entraram por rotas diferentes (norte e sul) já estavam separados muito antes, ainda na etapa asiática da migração. Dessa forma, não foi apenas um ramo africano a chegar na Austrália, mas sim dois ramos asiáticos que, milhares de anos depois, alcançaram Sahul por rotas diferentes.

Essa identificação de dois ramos humanos já separados milhares de anos antes de alcançarem Sahul reforça a teoria da cronologia longa, pois exige um processo migratório muito anterior ao sugerido pela cronologia curta. Só uma chegada por volta de 60 mil anos é capaz de acomodar o tempo de divergência revelado pelas linhagens genéticas.

Para a autora correspondente, Helen Farr, da Universidade de Southampton, as populações indígenas da Austrália e da Nova Guiné não apenas têm uma continuidade genética muito antiga, mas também seus profundos conhecimentos e habilidades marítimas foram fundamentais para a sobrevivência dos primeiros humanos, afirma ela à Live Science.

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