Menos conhecido do que outros contos amados de heróis lendários, como Gilgamesh, Beowulf e Rei Arthur, o “Canto de Wade” é um estudo de caso sobre o que acontece quando histórias não são registradas por escrito.
O épico já foi amplamente conhecido durante a Idade Média e o Renascimento na Inglaterra — tão popular que foi mencionado duas vezes pelo escritor Greoffrey Chaucer —, mas hoje está quase completamente esquecido. Apenas algumas frases sobreviveram, e novas pesquisas mostram como, quando tão pouco de uma história é preservado, a alteração de uma ou duas palavras pode mudar todo o enredo.
O “Canto de Wade” se originou no século XII, e seu herói enfrentava monstros — ou pelo menos era isso que os estudiosos acreditavam. O único texto conhecido foi encontrado há quase 130 anos, em um sermão em latim do século XIII, que citava um trecho da saga em inglês médio.
No trecho, a palavra “ylues” foi inicialmente traduzida como “elfos”, sugerindo que a saga perdida de Wade estava repleta de criaturas sobrenaturais.
Pesquisadores da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, desafiaram essa interpretação. Eles propuseram que o significado da palavra foi distorcido por um erro de transcrição de um escriba, que trocou um “w” por um “y”.
“Elfos” na verdade era “lobos”, e o termo era alegórico, referindo-se a homens perigosos, segundo a análise.
Outra palavra no trecho, traduzida como “espíritos”, na verdade deveria ser “serpentes marinhas”, afastando ainda mais a história do reino do sobrenatural, relataram os pesquisadores em 15 de julho na The Review of English Studies.
Essa nova leitura revisa não apenas as frases citadas no sermão, mas também todo o “Canto de Wade”, centrando o herói em perigos do mundo real, e não em bestas mitológicas.
Isso altera a imagem de Wade como um irmão literário de Beowulf, lendário matador do monstro devorador de guerreiros Grendel, disse o coautor do estudo, Dr. Seb Falk, pesquisador da história da ciência e membro do Girton College, em Cambridge.
“Ele era mais como um herói de romance cavalheiresco (um gênero literário que celebra cavaleiros, códigos de honra e amor romântico), como Sir Lancelot ou Sir Gawain”, disse Falk à CNN por e-mail.
Durante centenas de anos, historiadores e especialistas em literatura debateram por que Chaucer teria mencionado o “Canto de Wade” em suas obras de cavalaria. Reimaginar Wade como um herói da corte em vez de um matador de monstros faz sua aparição nos escritos de autor encaixar melhor e pode ajudar a revelar significados ocultos anteriormente nessas referências literárias, escreveram os autores.
Um meme medieval

O novo estudo é o primeiro a analisar o trecho do “Canto de Wade” em conjunto com todo o sermão em latim que o cita, disse o coautor Dr. James Wade, professor associado de Literatura Inglesa no Girton College.
(O sobrenome “Wade” era relativamente comum na Inglaterra medieval, e embora o pesquisador Wade não possa confirmar uma ligação familiar com o herói lendário, “não é impossível”, disse ele à CNN por e-mail.)
Na verdade, foi o contexto do sermão que levou os pesquisadores à descoberta de que o fragmento em inglês havia sido mal interpretado, afirmou Wade.
O sermão tratava de humildade e alertava que algumas pessoas “são lobos, como tiranos poderosos” que tomam “por quaisquer meios”. Havia outras alusões a traços animais desfavoráveis nos humanos.
Como foi traduzido originalmente, o trecho do “Canto de Wade” dizia: “Alguns são elfos e outros são víboras; alguns são espíritos que habitam junto às águas: não há homem algum, exceto Hildebrand (pai de Wade).”
Durante séculos, estudiosos tentaram entender por que referências a “elfos” e “espíritos” estavam presentes em um sermão sobre humildade. De acordo com a nova tradução, o trecho diz: “Alguns são lobos e outros são víboras; alguns são serpentes marinhas que habitam junto à água. Não há homem algum além de Hildebrand.”
Reinterpretado dessa forma, os trechos citados se alinham mais claramente com a mensagem geral do sermão e redefinem o gênero da história.
“Percebemos que, ao considerar o fragmento junto com seu contexto, poderíamos não apenas reinterpretar completamente a lenda de Wade, mas também reformular nossa compreensão de como as histórias eram contadas e recontadas em diferentes contextos culturais — incluindo os religiosos”, disse Wade.
As dificuldades de longa data na interpretação do trecho lembram que a paleografia — o estudo de documentos manuscritos — “nem sempre é uma ciência exata ou precisa”, afirmou a Dra. Stephanie Trigg, professora de Literatura Inglesa na Universidade de Melbourne, Austrália, “especialmente na transmissão de textos em inglês e outros idiomas vernáculos, sem a ortografia padronizada e abreviações do latim”.
Focar no sermão também é importante porque esse tipo de alusão a um épico popular era altamente incomum, disse Trigg, que não participou da pesquisa, à CNN por e-mail.
“Os autores estão certos ao destacar como o sermão parece citar a cultura popular medieval: isso não é tão comum”, disse Trigg. “Ajuda a abalar algumas visões tradicionais sobre a piedade medieval.”
Quando o pregador usou o “Canto de Wade” em seu sermão, era evidente que ele esperava que seu público entendesse a referência “como um elemento reconhecível da cultura popular: um meme”, disse Falk.
“Ao estudar esse sermão em profundidade, temos uma visão fascinante sobre as ressonâncias que essa literatura popular tinha em toda a cultura.”

Romântico e Fantástico
Essa nova perspectiva sobre a saga de Wade não significa que ela fosse baseada exclusivamente no realismo. Embora não existam outros trechos conhecidos do “Canto de Wade”, referências a Wade em textos de vários séculos trazem detalhes fantásticos o suficiente para encantar fãs de “O Senhor dos Anéis”, de J.R.R. Tolkien.
“Em um texto de romance, diz-se que [Wade] mata um dragão”, disse Falk. “Há um folclore local em Yorkshire, registrado por John Leland na década de 1530, de que ele tinha estatura gigantesca.” Outros textos afirmavam que Hildebrand era um gigante e sua mãe, uma sereia, acrescentou.
Na verdade, romances cavalheirescos desse período frequentemente incorporavam elementos de fantasia, disse Trigg. Na tradição literária cavalheiresca, “os romances frequentemente se baseiam em criaturas mitológicas e no sobrenatural”, e a distinção entre romances de cavalaria e mitologia “nem sempre é feita de forma rigorosa na literatura medieval”, afirmou ela.
Ainda assim, alinhar o “Canto de Wade” mais de perto com os romances medievais ajuda a esclarecer a confusão de longa data sobre as alusões a Wade feitas por Geoffrey Chaucer, em cenas de intriga cortesã em “O Conto do Mercador” e Troilus e Criseyde.
“Mencionar um guerreiro das ‘eras sombrias’, como Beowulf, nesses momentos é estranho e confuso”, disse Falk. “A ideia de que Chaucer está se referindo a um herói do romance medieval faz muito mais sentido.”
Embora o “Canto de Wade” tenha caído na obscuridade, sua aparição no sermão medieval e nas obras de Chaucer sugere que, por séculos, a lenda foi parte integrante da cultura popular na Inglaterra medieval — mesmo sem haver um texto definitivo preservando toda a narrativa.
Com o declínio da sua popularidade, grande parte dela desapareceu para sempre.
“Já no século XVIII, não havia textos sobreviventes conhecidos e ninguém parecia saber da história”, disse Wade. “Parte do fascínio duradouro está na ideia de algo que já foi conhecimento comum e de repente se torna ‘perdido’.”