A recuperação de áreas degradadas deixou de ser apenas um discurso ambiental e passou a operar como política de crédito, com metas de produtividade, clima e rastreabilidade — e impactos diretos sobre a gestão de risco no campo.
Em uma nova fase do programa Caminho Verde Brasil, o governo estruturou uma engenharia financeira para financiar a chamada “restauração produtiva” em escala, apoiada pelo Eco Invest Brasil, mecanismo que combina capital catalítico público e recursos privados para destravar investimentos sustentáveis no país.
Ao levar o crédito para áreas historicamente degradadas e condicionar o financiamento a metas ambientais e produtivas, o programa também altera a forma como o risco passa a ser percebido no campo e recoloca na agenda instrumentos de mitigação de risco, como o seguro rural, ainda que sem integração direta ao desenho do programa.
O Relatório de Pré-Alocação consolidado do segundo leilão do Eco Invest, realizado no início do ano, indica a captação de R$ 30,2 bilhões em investimentos totais, destinados à restauração produtiva de cerca de 1,4 milhão de hectares, com desembolsos previstos entre 2025 e 2027.
Na prática, o Caminho Verde Brasil entra agora em sua etapa mais sensível: transformar recursos alocados em projetos contratados, execução no campo, fiscalização e resultados produtivos.
Segundo o assessor especial do Mapa (Ministério da Agricultura e Pecuária), Carlos Augustin, esse momento marca a transição do desenho institucional para a operação.
Ele afirma que o programa “já está de pé”, com recursos assegurados, e que os bancos vencedores do leilão começaram a estruturar a oferta de crédito aos produtores e investidores.
“Já temos dez bancos que estão conveniados, que ganharam o leilão, e que, acredito, no início do ano que vem, já estão pondo isso em ordem de marcha, oferecendo aos clientes, agricultores e investidores que queiram usar esses recursos para sair de uma produtividade baixa para uma alta produtividade”, afirmou ao CNN Money.
“Pode ser de pecuária, lavoura, fruticultura, o que for. Inclusive, falando exatamente sobre isso, são até 40 milhões de hectares improdutivos que esse programa pretende recuperar.”
Além da captação dos R$ 30 bilhões iniciais, o governo assinou, durante a COP30, em Belém, com a JICA (Agência de Cooperação Internacional do Japão) um acordo de cooperação que prevê apoio técnico ao programa Caminho Verde Brasil, associado a um aporte financeiro de até US$ 1 bilhão para a recuperação de áreas degradadas.
Com a entrada desses recursos e a combinação com outros instrumentos de financiamento, o governo trabalha com a possibilidade de elevar o volume total do programa para cerca de R$ 50 bilhões.
“O potencial é de 40 milhões de hectares. Quanto tempo vamos levar para fazer isso depende, obviamente, do tamanho dos recursos. Começamos bem, com R$ 30 bilhões. Temos expectativa de aprovação de mais recursos da JICA e de outros instrumentos, o que pode nos levar a algo perto de R$ 50 bilhões”, disse Augustin.
Pelo lado operacional, dez bancos foram selecionados — sete privados e três públicos (Banco do Brasil, BNDES e Caixa Econômica Federal). A ampla participação amplia a capilaridade do programa, mas também eleva o desafio de padronizar critérios técnicos, mensuração de resultados e monitoramento em escala nacional.
Os dados do relatório também indicam onde os recursos tendem a se concentrar e quais modelos produtivos ganham prioridade nesta fase inicial.
A pré-alocação aponta direcionamento para biomas estratégicos, com cerca de 57% dos recursos no Cerrado, seguido por Mata Atlântica (13%), Amazônia (12%), Caatinga (10%) e Pampa e Pantanal (cerca de 4% cada).
Na distribuição por tipo de atividade financiável, o maior interesse aparece em culturas perenes (33%) e abordagens integradas (29%), como SAF (Sistemas Agroflorestais) e ILPF (Integração Lavoura-Pecuária-Floresta). Também aparecem lavouras anuais ou pecuária isolada (27%) e florestas e restauração (11%).
Do ponto de vista do programa, a régua de acesso ao crédito é explicitamente ambiental e produtiva. O guia do Caminho Verde Brasil lista práticas como bioinsumos, plantio de cobertura, sistemas integrados, certificação trabalhista e rastreabilidade bovina como parte do pacote de sustentabilidade.
Entre as exigências centrais, o produtor não pode desmatar por dez anos e precisa comprovar redução de emissões de gases de efeito estufa, com monitoramento por satélite e protocolos técnicos coordenados pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).
Segundo Augustin, a lógica do programa é alinhar incentivo financeiro e exigência ambiental para induzir uma mudança estrutural no uso da terra.
“Não se trata apenas de um plano de investimento na agricultura. É um plano que pressupõe não desmatar, usar áreas mal utilizadas, reduzir emissões e produzir muito mais. A ideia é produzir mais, com menos emissão, maior produtividade, maior economia e competitividade no mercado”, afirmou.
Seguro rural deixa de ser apenas um produto acessório
Essa nova configuração no campo expõe limitações históricas de um setor que, segundo o próprio agronegócio, ainda não consegue oferecer proteção na mesma escala do risco: o seguro rural.
Dados recentes da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) indicam que a cobertura caiu de cerca de 30% da área agrícola para apenas 5% neste ano, em um contexto marcado por eventos climáticos recorrentes, perdas sucessivas no campo e aumento da inadimplência no crédito rural.
É nesse cenário que o seguro rural deixa de ser apenas um produto acessório e passa a ser discutido como parte da engrenagem financeira dos novos modelos de crédito verde, ainda que enfrente desafios de escala, divulgação e adaptação técnica.
Para o presidente da Comissão de Seguro Rural da FenSeg (Federação Nacional de Seguros Gerais), Glaucio Toyama, a oferta de produtos existe, mas ainda enfrenta gargalos de informação.
“Existem seguros para restauração florestal em áreas de mata nativa há mais de três anos. O que acontece é que esse tipo de produto ainda é pouco divulgado. Muitos produtores acreditam que não existe cobertura disponível para restauração, quando, na verdade, ela já existe”, disse.
Segundo Toyama, a complexidade aumenta quando o financiamento passa a contemplar sistemas integrados, como ILPF e SAF, que combinam agricultura, pecuária e floresta em uma mesma área.
“Quando a gente fala de sistemas como ILPF ou sistemas agroflorestais, o desafio é que não existe padronização. Cada projeto combina culturas, floresta e pecuária de um jeito diferente. Isso dificulta a criação de um produto massificado, porque não há uma base estatística única para precificação do risco”, destacou.
Diante desse cenário, o mercado segurador tem avançado por meio de soluções customizadas, como a combinação de seguros agrícolas, pecuários e florestais, ou a estruturação de seguros de receita que considerem o desempenho do sistema como um todo.
Na precificação, Toyama explica que a recuperação de áreas degradadas tende a melhorar o risco ao longo do tempo, mas exige cuidado na fase inicial da conversão produtiva.
“No início da recuperação, a produtividade ainda não é igual à média regional. Por isso, o seguro precisa considerar um nível tecnológico inicial. Não dá para tratar uma área recém-recuperada como se ela já estivesse plenamente consolidada”, ponderou.
Ele ilustra com um exemplo prático:
“Se a média regional é de 50 sacas por hectare, o gatilho tradicional pode ser 70% disso, em torno de 35 sacas. Em uma área recém-recuperada, cuja expectativa pode ser de 40 sacas, o gatilho precisa ser ajustado para algo próximo de 28 sacas.”
No mapa de riscos do seguro agrícola, dois eventos climáticos seguem concentrando mais de 70% dos sinistros: excesso e falta de chuva. A saída, segundo Toyama, são os seguros paramétricos, acionados por índices climáticos.
“Eles ajudam a trazer previsibilidade mesmo quando a produtividade ainda está em formação”, concluiu.