Relatos do massacre de centenas de sudaneses após a captura da cidade de El Fasher, em Darfur, região no oeste do Sudão, pelas RSF (Forças de Apoio Rápido), representam o capítulo mais recente de um conflito brutal que já matou mais de 150 mil pessoas nos últimos dois anos e meio.
Mas, embora a guerra no país seja frequentemente retratada como um conflito interno entre dois generais rivais, o envolvimento obscuro de diversas potências estrangeiras torna o embate muito mais complexo – e mortal.
O Sudão é visto por muitos como estrategicamente importante na região. Sendo uma ponte entre o Oriente Médio e a África, o país controla cerca de 800 quilômetros da costa do Mar Vermelho, ao longo de uma importante rota marítima. Além disso, a nação possui vastas áreas agrícolas e importantes depósitos de ouro.
O país africano também é o maior produtor mundial de goma arábica, um ingrediente alimentar, farmacêutico e cosmético. Com relação a outros recursos, o Sudão desempenha um papel fundamental na diplomacia da água na região, com cerca de 640 quilômetros do Nilo Azul atravessando seu território.
Na quinta-feira (5), diante da crescente pressão internacional devido ao massacre relatado em Darfur, as RSF anunciaram que concordaram em participar de uma trégua humanitária proposta por quatro países, conhecidos como Quad: Estados Unidos, Emirados Árabes Unidos, Egito e Arábia Saudita.
Um porta-voz do Departamento de Estado americano afirmou que os EUA continuam a dialogar diretamente com as RSF (Forças de Apoio Rápido) e as SAF (Forças Armadas Sudanesas), rivais do grupo, “para facilitar uma trégua humanitária”.
O Departamento de Estado incitou as duas partes a aceitarem a proposta, “dada a urgência imediata de reduzir a violência e pôr fim ao sofrimento do povo sudanês”.
Influência externa no conflito
Mas, três dos mesmos países envolvidos na intermediação da possível trégua – Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e Egito – juntamente com a Rússia, foram acusados por organizações de direitos humanos e diversos governos ocidentais de tentar influenciar o conflito no Sudão por vários meios.
Alguns desses meios incluem o fornecimento de armas, apoio financeiro e logístico e o oferecimento de apoio diplomático.
Os quatro apoiaram inicialmente os militares sudaneses quando depuseram o ditador de longa data Omar al-Bashir em 2019 e quando consolidaram seu poder sobre o país em um golpe de Estado em 2021.
Mas quando as duas figuras principais por trás do golpe – o chefe das RSF, Mohamed Hamdan Dagalo, também conhecido como Hemedti, e Abdel Fattah al-Burhan, responsável pelas SAF – começaram a se enfrentar, as potências estrangeiras tiveram que escolher quem apoiar, e seu envolvimento tornou-se ainda mais obscuro.
Há muito em jogo. “Quem controlar o Sudão estará em posição de exercer influência em toda a região no Chifre da África, bem como na África Subsaariana”, explicou Charles Ray, diplomata americano aposentado que atuou como embaixador dos Estados Unidos no Camboja e no Zimbábue.
Atualmente, Ray preside o Programa para a África do Instituto de Pesquisa de Política Externa.
Entenda o que se sabe sobre os países envolvidos no possível acordo de trégua humanitária.
O papel dos Emirados Árabes Unidos
Os Emirados Árabes Unidos têm sido repetidamente acusados de fornecer armas às RSF paramilitares do general Dagalo.
Especialistas e ativistas de direitos humanos rastrearam armas encontradas em Darfur até os Emirados Árabes Unidos. E, durante o governo Biden, os Estados Unidos – um aliado fundamental do país – destacaram ligações entre diversas empresas sediadas no país do Golfo e os rebeldes das RSF.
Os Emirados Árabes Unidos negaram veementemente as alegações, embora um painel de especialistas nomeado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas tenha afirmado, no ano passado, que elas eram “prováveis”.
Diversos legisladores americanos tentaram repetidamente bloquear a venda de armas dos americanos aos Emirados Árabes Unidos devido às alegações.
Além disso, na semana passada, a Comissão de Relações Exteriores do Senado dos EUA pediu que as Forças de Apoio Rápido fossem oficialmente designadas como organização terrorista.
Na mesma declaração, a comissão afirmou que “apoiadores estrangeiros”, incluindo os Emirados Árabes, “alimentaram e lucraram com o conflito”. A comissão não pediu especificamente que Washington interrompesse a venda de armas para o país.
Khalil al-Anani, professor de ciência política e pesquisador visitante do Centro de Estudos Árabes Contemporâneos da Universidade de Georgetown, disse à CNN que, embora os Emirados Árabes Unidos estivessem envolvidos no Sudão “principalmente por objetivos econômicos — para controlar suas riquezas naturais, incluindo agricultura e ouro”, também havia outros motivos.
Ele afirmou que o país “não deseja uma transição democrática bem-sucedida no Sudão”.
“Isso se encaixa em sua campanha regional mais ampla contra os movimentos da Primavera Árabe; por mais de uma década, (os Emirados Árabes Unidos) têm sido um dos principais patrocinadores de forças contrarrevolucionárias em todo o mundo árabe”, disse ele.
Suposta conexão antiga entre Emirados Árabes Unidos e RSF
Os laços entre os Emirados Árabes Unidos e a milícia RSF (Forças de Apoio Rápido) remontam a antes do conflito atual.
O chefe das RSF, Hemedti, tem fortes conexões no país por meio de alguns membros de sua família, que, segundo autoridades americanas, controlam uma rede de empresas sediadas na região.
O OFAC (Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros) do Departamento do Tesouro dos EUA sancionou várias dessas empresas, alegando que estavam envolvidas no fornecimento de armas à RSF
o Escritório também acusou o Tesouro americano pelo financiamento da força por meio da venda de ouro extraído de minas em áreas controladas pela milícia para comerciantes em Dubai.
O OFAC afirmou que essas empresas eram controladas por Hemedti, seus irmãos Algoney Hamdan Dagalo Musa e Abdul Rahim Dagalo, ou outras pessoas intimamente ligadas a ele.
Ao anunciar as sanções contra Musa, um dos irmãos, o OFAC especificou que ele reside em Dubai e está envolvido nos “esforços das Forças de Apoio Rápido para adquirir armas e outros materiais militares”.

Anwar Gargash, principal assessor diplomático do líder dos Emirados Árabes Unidos, classificou as reportagens sobre o envolvimento do país com as Forças de Apoio Rápido como “notícias falsas”.
“Infelizmente… com notícias falsas e todo tipo de campanha midiática, há tentativas de nos retratar sob uma luz diferente. Mas é isso que queremos: queremos negociações, queremos a transição para um governo civil e, principalmente, precisamos de um cessar-fogo”, declarou Gargash.
Em comunicado separado, a embaixada dos Emirados Árabes Unidos em Washington, D.C., entrou em contato com a CNN esta semana após a publicação de uma reportagem anterior da emissora que mencionava seu suposto envolvimento no Sudão.
A embaixada rejeitou a alegação e afirmou que tem “apoiado consistentemente os esforços regionais e internacionais para alcançar um cessar-fogo imediato, proteger civis e garantir a responsabilização por violações cometidas por todas as partes em conflito”.
“Rejeitamos categoricamente qualquer alegação de que tenhamos fornecido qualquer tipo de apoio a qualquer uma das partes em conflito desde o início da guerra civil”, afirmou um representante dos Emirados Árabes Unidos em nota enviada à CNN.
A fonte oficial mencionou um relatório publicado pelo painel de especialistas da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre o Sudão em abril deste ano, que não inclui alegações de envolvimento dos Emirados Árabes Unidos, ao contrário de versões anteriores do mesmo relatório.
No entanto, uma fonte com conhecimento da situação explicou à CNN que os especialistas da ONU encontraram o que consideraram evidências plausíveis de que os Emirados Árabes Unidos forneceram armas às Forças de Apoio Rápido.
Além disso, essa descoberta também incluiu o rastreamento de munições anteriormente exportadas da Bulgária para os Emirados Árabes Unidos, na região de Darfur.
Essas evidências não foram incluídas no relatório de abril. A CNN entrou em contato com a ONU para obter um posicionamento.
O governo búlgaro informou à CNN que não emitiu nenhuma autorização para a exportação de produtos relacionados à defesa para o Sudão.

Em outro comunicado, a Anistia Internacional publicou um relatório detalhado no início deste ano alegando que armas chinesas, incluindo o sistema obus AH4, foram encontradas em Darfur.
Os Emirados Árabes Unidos são o único país que confirmou ter importado essas armas específicas da China, de acordo com o SIPRI (Instituto Internacional de Pesquisa da Paz de Estocolmo).
A CNN solicitou um posicionamento do governo dos Emirados Árabes Unidos sobre essas alegações específicas.
O Ministério das Relações Exteriores do país afirmou que os sistemas obus em questão “estão disponíveis no mercado internacional há quase uma década”.
“A afirmação de que apenas um país adquiriu ou transferiu esse sistema é inválida”, disse o ministério à CNN, apesar dos registros mostrarem o contrário. A CNN entrou em contato com o fabricante chinês das armas para obter um posicionamento.
O ministério dos Emirados Árabes Unidos não respondeu à pergunta sobre as munições de fabricação búlgara.
Mas, em uma rara admissão de fracasso diplomático, Gargash afirmou em um evento no Bahrein, em 2 de novembro, que a comunidade internacional cometeu um “erro” ao não “se posicionar firmemente” quando os dois generais derrubaram o governo civil em 2021.
Os Emirados Árabes Unidos estavam entre os poucos países, juntamente com Rússia, Arábia Saudita, Egito e China, que não condenaram o golpe na época.
“Mas era um momento em que o Sudão estava saindo das sanções americanas e pensamos: ‘Não, vamos tirar o Sudão das sanções americanas’. Claramente, o que aconteceu depois foi que a relação entre os dois generais se deteriorou e levou o Sudão à atual guerra civil que vemos hoje”, expressou ele.

Selma el Obeid, pesquisadora independente que estuda a situação no Sudão e na região há mais de uma década, afirmou que a cooperação militar entre os Emirados Árabes Unidos e as RSF (Forças de Apoio Rápido) vai muito além da transferência de armas.
“Para os Emirados Árabes Unidos, o mais importante é ter acesso à milícia das RSF para que possam utilizá-la em outros lugares”, disse ela à CNN.
Antes do golpe de Estado de 2021 no Sudão, tropas sudanesas lutavam no Iêmen como parte da coalizão liderada pela Arábia Saudita contra os rebeldes houthis, apoiados pelo Irã.
Em 2019, Hemedti confirmou a presença de combatentes sudaneses no Iêmen e afirmou que seu apoio à coalizão continuaria.
Por que o conflito interessa o Egito
O Egito, país vizinho, apoiou Al-Burhan, chefe das Forças Armadas Libanesas, e Hemedti, chefe das Forças de Apoio Rápido, quando eles lançaram o golpe para depor al-Bashir, chegando a realizar uma série de exercícios militares conjuntos em 2021 e 2022.
O presidente egípcio, Abdel Fattah el-Sisi, é um ex-general que chegou ao poder ao liderar o golpe militar de 2013, que depôs o primeiro presidente democraticamente eleito do país.
Desde então, Sisi tem reprimido a dissidência e as liberdades civis. Diversas organizações internacionais, incluindo a ONU e a Human Rights Watch, manifestaram sérias preocupações com a situação dos direitos humanos no Egito.
“Um Sudão livre e democrático exporia todos os problemas do Egito, e isso não facilitaria a manutenção do controle por parte do governo egípcio”, analisou Ray, ex-diplomata americano, à CNN.
Após o desentendimento entre os dois generais, o Cairo deixou claro que considerava al-Burhan e as SAF (Forças Armadas Sudanesas) como o poder legítimo no Sudão. O governo realizou repetidas reuniões com ministros de al-Burhan, oferecendo apoio diplomático.
Em uma dessas reuniões, no mês passado, o Ministério das Relações Exteriores egípcio endossou especificamente as SAF, com uma declaração expressando o “compromisso do Egito com a soberania do Sudão, a integridade territorial e o papel vital de suas instituições nacionais, particularmente as Forças Armadas Sudanesas”.
Hemedt, chefe das Forças de Apoio Rápido, já acusou o Egito de fornecer armas às SAF e de atacar as RSF – alegações que o Egito rejeitou. A CNN solicitou um comentário do governo egípcio.

Motivações de apoio ao Sudão e outros fatores
Como vizinho imediato, o Egito tem inúmeras razões para se interessar pelo futuro do Sudão.
“O Egito está envolvido principalmente por preocupações com a segurança nacional, em especial pelas implicações da instabilidade do Sudão no Rio Nilo, a principal via de acesso do Egito”, disse al-Anani, da Universidade de Georgetown, acrescentando que há outra motivação fundamental para o Cairo: “Impedir o surgimento de um sistema democrático no Sudão após a queda de al-Bashir”.
Ele acrescentou, no entanto, que o apoio do Egito é limitado, porque o Cairo está “restricionado por sua forte dependência econômica dos Emirados Árabes Unidos, que fornecem ao regime de Sisi uma assistência financeira maciça”.
Existem também considerações práticas.
“O Egito também teme as consequências humanitárias da guerra: o influxo de dezenas de milhares de refugiados sudaneses aumentou a pressão sobre uma economia já frágil”, afirmou al-Anani, enquanto Ray também apontou para os problemas de segurança hídrica de longa data do Egito.
Egito e Etiópia estão em conflito por água há mais de uma década, desde que a Etiópia anunciou sua intenção de construir a Grande Barragem do Renascimento Etíope no Nilo.
A barragem foi oficialmente inaugurada em setembro, em meio a fortes protestos do Egito, que depende do Nilo para cerca de 90% de seu abastecimento de água doce.
O Sudão, situado entre a Etiópia e o Egito, é um ator fundamental na disputa. “Ter o Sudão cooperando e do seu lado é uma vantagem (para o Egito) na competição com a Etiópia”, observou Ray.
Arábia Saudita
Superficialmente, a Arábia Saudita mantém a neutralidade, defendendo uma solução sudanesa para o conflito e copatrocinando esforços de mediação com os Estados Unidos.
Mas, assim como o Egito, observadores afirmam que a Arábia Saudita tem apoiado sutilmente al-Burhan e suas Forças Armadas Sauditas, fornecendo-lhe respaldo diplomático.
O país desempenhou um papel importante no deslocamento de milhares de pessoas do Sudão, a maioria estrangeiros, nas primeiras semanas do conflito.
A Arábia Saudita deixou claro que considera o Sudão seu vizinho imediato e seu principal esforço tem sido manter a estabilidade ao longo do Mar Vermelho – um canal comercial fundamental para os planos do primeiro-ministro saudita e príncipe herdeiro Mohammed bin Salman para a economia saudita.
A CNN entrou em contato com a Arábia Saudita para obter um posicionamento.
Ray afirmou que, assim como os Emirados Árabes Unidos, a Arábia Saudita tem um profundo interesse econômico e estratégico no Sudão, incluindo garantir que o país não seja ofuscado por seus rivais regionais.
“Existem benefícios econômicos para os sauditas em estarem envolvidos na África, tanto no Norte da África quanto na África Subsaariana, onde eles também estão marcando presença cada vez mais”, explicou Charles Ray, diplomata americano
“Mas, acho que eles provavelmente também levam em consideração a presença de alguns de seus concorrentes, e trata-se tanto de conseguir acompanhar a concorrência quanto de qualquer outra coisa”, acrescentou Ray.
Oportunidade para a Rússia
No mesmo período da guerra na Ucrânia, a Rússia também viu no Sudão uma oportunidade para aprofundar sua influência na África.
Os EUA acusaram Moscou de “jogar em ambos os lados do conflito para promover seus próprios objetivos políticos egoístas à custa de vidas sudanesas”.
A CNN já havia relatado que o grupo mercenário russo Wagner fornecia mísseis às Forças de Apoio Rápido por meio da Síria, Líbia e República Centro-Africana.
Durante anos, o grupo mercenário apoiou grupos militantes e regimes autoritários no Sahel em troca de recursos minerais — incluindo enormes concessões na indústria de mineração de ouro do Sudão.
O envolvimento do Wagner no Sudão aparentemente também chamou a atenção da Ucrânia. Kiev teria realizado uma série de ataques contra as RSF em 2023. Uma investigação da CNN sobre os ataques concluiu que a Ucrânia provavelmente estava por trás deles, uma alegação que os ucranianos se recusaram a confirmar ou negar.
O envolvimento da Rússia tornou-se mais complexo após a fracassada rebelião do Grupo Wagner contra o presidente russo Vladimir Putin em 2023 e a subsequente morte, em um acidente de avião, de seu líder, Yevgeny Prigozhin.
Desde então, o Kremlin tem tentado absorver o grupo e seus combatentes nas forças armadas russas e exercer controle direto sobre os grupos paramilitares que assumiram as operações do Wagner.
No entanto, enquanto o Wagner apoiava abertamente o chefe das Forças de Apoio Rápido, Hemedti, o Kremlin negociava com al-Burhan e suas forças. Buscando acesso ao Mar Vermelho, Moscou tentava obter a concordância do Sudão para a construção de uma base naval em Porto Sudão.
A CNN solicitou um posicionamento do governo russo.
Propenso à exploração
Al-Anani disse à CNN que acreditava que “não havia nenhum ator neutro no conflito sudanês”.
“Cada parte tem seus próprios objetivos e intervém para perseguir seus interesses. Controlar (o Sudão) significa exercer influência sobre toda a região subsaariana”, disse ele à CNN.
Os anos de violência terrível enfraqueceram o Sudão, mergulhando suas instituições no caos e tornando sua população mais vulnerável e pobre. Tudo isso, disse al-Anani, o torna um alvo fácil para a exploração por potências estrangeiras.