Um crânio gravemente esmagado, desenterrado há décadas na margem de um rio na China central e que antes desafiava classificação, agora está abalando a árvore genealógica humana, de acordo com uma nova análise.
Cientistas reconstruíram digitalmente a peça achatada, que se acredita ter 1 milhão de anos, e suas características sugerem que o fóssil pertencia à mesma linhagem de um espécime impressionante chamado “Homem-Dragão” e dos Denisovanos — uma população enigmática e recentemente descoberta de humanos pré-históricos com origens obscuras.
A idade do crânio e sua categorização como um ancestral inicial do grupo arcaico significariam que o grupo se originou muito antes do que se pensava.
A análise mais ampla dos pesquisadores, baseada na reconstrução e em mais de 100 outros fósseis de crânios, também esboçou um quadro radicalmente diferente da evolução humana, relataram eles nesta quinta-feira (25) na revista Science.
Os resultados alteram significativamente a linha do tempo de espécies como a nossa, Homo sapiens, e Homo neanderthalensis. Os neandertais, humanos arcaicos que viveram na Europa e Ásia Central antes de desaparecerem por volta de 40 mil anos atrás, são conhecidos por terem convivido com os Denisovanos e se cruzado com eles.
“Isso muda muito o pensamento porque sugere que, há 1 milhão de anos, nossos ancestrais já haviam se dividido em grupos distintos, apontando para uma cisão evolutiva humana muito mais precoce e complexa do que se acreditava anteriormente”, disse o coautor do estudo Chris Stringer, paleoantropólogo e líder de pesquisa em evolução humana no Museu de História Natural de Londres, em um e-mail.
As descobertas, se amplamente aceitas, empurrariam o surgimento de nossa própria espécie 400 mil anos para trás e remodelariam drasticamente o que se sabe sobre as origens humanas.

Ancestralidade emaranhada
O crânio é um de dois espécimes parcialmente mineralizados desenterrados em 1989 e 1990 em uma área conhecida como Yunxian, em Shiyan, localizada na província de Hubei, na China central. Uma terceira peça descoberta nas proximidades em 2022 ainda não foi descrita formalmente na literatura científica, observou Stringer.
“Decidimos estudar esse fóssil novamente porque ele possui datação geológica confiável e é um dos poucos ossos humanos com 1 milhão de anos”, disse o primeiro autor do estudo, Xiaobo Feng, professor da Universidade de Shanxi, na China, em um comunicado. “Um fóssil dessa idade é crítico para reconstruir nossa árvore genealógica.”
Ambos os crânios de Yunxian foram deformados por milênios passados no subsolo, mas o segundo, conhecido como Yunxian 2, foi melhor preservado.
Esse espécime formou a base da nova reconstrução, que usou tomografia computadorizada de ponta, imagem luminosa e técnicas virtuais para separar os ossos da matriz rochosa que os envolvia e corrigir as distorções inerentes ao fóssil.
A idade do crânio, determinada pela datação da camada de sedimento em que foi encontrado e de fósseis de mamíferos da mesma camada, levou alguns especialistas a acreditarem que ele pertencia ao Homo erectus, uma espécie humana mais primitiva conhecida por ter vivido em muitos lugares do mundo naquela época.
No entanto, embora a grande e baixa caixa craniana de Yunxian 2 se parecesse com a do Homo erectus, outras características do crânio, como as maçãs do rosto planas e rasas, não correspondiam.
Stringer e seus colegas concluíram que Yunxian 2 pertencia a um ancestral inicial do Homem-Dragão, formalmente chamado Homo longi.
Cientistas identificaram o Homem-Dragão em 2021 a partir de um crânio encontrado no fundo de um poço no nordeste da China, e autores de um estudo de junho usaram DNA antigo para vincular o Homo longi aos Denisovanos, uma população obscura conhecida a partir de informações genéticas extraídas de alguns fragmentos fósseis, mas que se acredita ter vivido em grande parte da Ásia.
A análise mais recente também sugere que outros fósseis difíceis de classificar descobertos na China deveriam ser agrupados com o Homo longi e os Denisovanos — incluindo partes que outra equipe de pesquisa recentemente propôs como uma nova espécie chamada Homo juluensis, um nome que se traduz aproximadamente como “homem de cabeça enorme”.
Stringer disse que o terceiro fóssil craniano de Yunxian, assim que os pesquisadores o prepararem e estudarem em detalhes, permitirá testar a precisão da reconstrução e sua colocação na árvore genealógica humana.

Reescrevendo a história
Com saliências e cristas reveladoras, os crânios são particularmente informativos no estudo da evolução humana porque possuem muitas características distintivas, e um crânio é tipicamente o espécime que pode confirmar definitivamente uma espécie recém-descoberta.
Usando informações da nova reconstrução digital e dados anatômicos de 104 crânios e mandíbulas do registro fóssil humano, Stringer e seu coautor Xijun Ni, professor do Instituto de Paleontologia de Vertebrados e Paleoantropologia em Pequim, reconstruíram as relações evolutivas entre diferentes grupos usando um programa matemático empregado na biologia evolutiva.
A equipe montou o que é conhecido como árvore filogenética mostrando como diferentes espécies humanas podem ter divergido umas das outras ao longo do último milhão de anos.
A análise sugere que as origens do Homo sapiens, dos Denisovanos e dos Neandertais são muito mais antigas do que se pensava.
A descoberta desafia a visão tradicional, baseada em estudos de DNA antigo, de que as três espécies começaram a divergir de um ancestral comum entre 700 mil e 500 mil anos atrás — embora nunca tenha ficado claro quem eram esses ancestrais, às vezes apelidados de Ancestral X.
De acordo com a nova análise, Denisovanos e humanos modernos compartilharam um antepassado comum há cerca de 1,32 milhão de anos.
Os Neandertais se separaram dessa linha evolutiva antes, por volta de 1,38 milhão de anos atrás, sugeriu o estudo. As descobertas significam que os Denisovanos estão mais próximos de nós do que os Neandertais, que muitos consideravam a espécie-irmã mais próxima do Homo sapiens, escreveram os pesquisadores.
A reconstrução do crânio deformado ficou boa, disse Ryan McRae, paleoantropólogo do Museu Nacional de História Natural Smithsonian, em Washington, DC. McRae, que não participou da pesquisa, concordou que ele se encaixa no Homo longi e nos Denisovanos.
No entanto, McRae está menos convencido pela análise da árvore filogenética e disse que a equipe pode ter tentado “fazer demais de uma só vez com dados limitados”.
“Este estudo diz que os Denisovanos (Homo longi) e o Homo sapiens estão mais estreitamente relacionados, excluindo os Neandertais”, explicou. “Também dá um passo além, dizendo que as origens de todos esses grupos são muito mais antigas do que o esperado, cerca de duas vezes mais antigas, senão mais. Isso colocaria as origens de todos esses grupos firmemente na época do Homo erectus.
“Neste momento, acho mais seguro dizer que o grupo Homo longi/Denisovano e o Homo sapiens (incluindo fósseis muito arcaicos e humanos modernos) parecem mais semelhantes entre si do que aos Neandertais”, acrescentou ele por e-mail.
Se a cronologia apontada neste artigo estiver correta, McRae disse que o único candidato para o ancestral comum do Homo sapiens, Homo longi e Homo neanderthalensis seria o Homo erectus. “Realmente não há outra espécie conhecida do período de ~1,5 milhão de anos atrás que faria sentido”, disse McRae.
A espécie humana Homo antecessor é conhecida por ter vivido há cerca de 1 milhão de anos, e outra, Homo heidelbergensis, há cerca de 700 mil anos, acrescentou.
Stringer disse que previa que as descobertas atrairiam algum ceticismo, e os pesquisadores planejam ampliar suas análises para incluir mais fontes de dados e outros fósseis, inclusive da África, a fim de refinar o quadro.
O estudo levanta uma questão mais ampla sobre onde viveram as populações ancestrais de Homo sapiens, Neandertais e Homo longi: dentro ou fora da África, amplamente considerada o berço da humanidade, observou Stringer.
Os autores disseram que, embora o estudo avance um pouco na resolução do que os paleoantropólogos chamam de “confusão do meio” — a variedade enigmática de espécimes humanos no registro fóssil entre 1 milhão e 300 mil anos atrás — descobertas como o crânio Yunxian 2 também ressaltam o quanto os cientistas ainda têm a aprender sobre as origens humanas.
“Quando comecei a trabalhar com evolução humana, há mais de cinquenta anos, o registro do Leste Asiático era ou marginalizado, ou seus fósseis eram sempre considerados apenas como ancestrais diretos dos asiáticos orientais recentes”, disse Stringer por e-mail.
“Mas o que agora vemos em Yunxian — e em muitos outros sítios — é que o Leste Asiático preserva pistas cruciais para os estágios posteriores da evolução humana.”