Já quis queimar um homem alguma vez? Em junho de 1986, os fundadores do projeto e organização sem fins lucrativos Burning Man, Larry Harvey e Jerry James, construíram uma efígie humana de madeira e atearam fogo nela na Praia Baker, em São Francisco. O ato simbólico, que eles chamaram de “Primeira Queima”, representava o desapego de suas crises pessoais.
Desde então, a dupla se comprometeu a repetir o ato anualmente. O evento, que começou durando apenas um dia em São Francisco, mudou-se em 1990 para Black Rock City, em Nevada, e hoje dura uma semana.
“É um evento interessante porque você tem que sobreviver alguns dias com pessoas que nunca conheceu, cercado por arte e poeira, e o desafio de ser autossuficiente no deserto”, disse Henry Wu, fotógrafo e criador de conteúdo no Instagram. Ele participa do Burning Man todos os anos desde 2010 e irá novamente este ano.
“O Burning Man é totalmente sobre você. Você é parte do todo e não está lá apenas como um observador. Você está lá como um participante”, acrescentou.
Embora a mídia tradicional se concentre em Black Rock City, existem eventos do Burning Man no mundo todo.
O que é o Burning Man?
“Globalmente, o Burning Man é um movimento cultural que existe em todos os continentes e em todos os lugares. Mas o que ele significa, em termos de experiência, é muito particular. Realmente depende de quem você é e de que parte dele você enxerga”, disse Stuart Mangrum, diretor do Centro Filosófico do Burning Man, um departamento da organização sem fins lucrativos.
Embora algumas pessoas se refiram ao Burning Man como um festival, muitos dizem que é mais próximo de uma obra de arte viva. Todo ano, nessa época, as cidades do Burning Man são construídas em diferentes partes do mundo, atraindo mais de 70 mil pessoas para Black Rock City e cerca de 100 mil para eventos afiliados em todo o planeta.
Juntos, ao longo de um fim de semana ou de oito dias, os burners (pessoas que participam do Burning Man) cultivam uma sociedade desmercantilizada com vários acampamentos e bairros focados em arte, performance, expressão e serviço comunitário, segundo Mangrum.
“Você pode vir a uma cidade de 80 mil pessoas e talvez nunca saia de um único bairro. É isso que você vai ver. É uma cidade, e uma cidade muito cosmopolita, e todo mundo sai com uma reação diferente sobre ela”, disse Mangrum.
No final – 1º de setembro, pelo menos no deserto de Nevada – a cidade é desconstruída e apagada da face do planeta.
Os princípios do Burning Man
À medida que mais pessoas vivenciavam o Burning Man desde a sua fundação, a caixa de entrada da organização se enchia de perguntas sobre como levar o evento para lugares fora do Ocidente. Para orientá-los, Harvey escreveu 10 princípios, que poderiam ser usados para recriar a vibe dos eventos do Burning Man.
“Os 10 princípios nunca foram feitos para serem analisados um por um”, mas para serem vistos em conjunto, disse Marian Goodell, CEO da Burning Man non-profit, que organiza o projeto.
Alguns dos princípios, como a desmercantilização, são físicos. Durante os eventos do Burning Man, os burners não podem usar dinheiro. Qualquer arte ou comida que eles levam é trocada em forma de presente, ou levada como meio de apoiar a comunidade.
“Nós removemos as transações. Removemos as transações porque queremos a interação, pois é uma parte proposital do que cria conexão e comunidade”, disse Goodell.
Os princípios foram criados de uma forma que encoraja o envolvimento e a construção da comunidade. Mas nem tudo é coletivo.
Outros princípios, como a autoexpressão radical, encorajam a autenticidade individual como uma forma de se conectar.
O que é a autoexpressão radical?
“Nós tendemos a querer nos conformar com a sociedade e (a medida em que nos conformamos) muda de acordo com o ambiente. Então, a forma como agimos de um lugar para outro pode mudar”, disse a Dra. Maya Al-Khouja, psicóloga motivacional e gerente de pesquisa na Bristol Student’s Union. Ela não tem nenhuma conexão com o projeto Burning Man.
“Agimos de uma certa maneira no trabalho, mas podemos agir de uma maneira diferente com os amigos ou com a família. E fazemos isso porque nos ajuda a nos encaixar e manter nossos relacionamentos positivos.”
Quer saibamos ou não, a maioria das pessoas tem dificuldade em agir com autenticidade por causa de nossa tendência a nos conformar. Isso pode significar ser limitado pelas regras sociais que você tem em amizades ou por influências externas, como o capitalismo.
“Então, algo como a autoexpressão radical, não é apenas ser o seu eu autêntico, mas é fazê-lo de uma maneira realmente ousada e deliberada. Às vezes, é até de uma forma performática”, disse Al-Khouja.
A autenticidade nesse nível exige que você tenha algum nível de segurança psicológica, que é quando você está em um espaço onde a autenticidade e a singularidade são recompensadas, de acordo com Al-Khouja. Isso não é algo que está prontamente disponível na maioria das situações, já que a norma é se conformar.
A maioria das pessoas não tem a capacidade de vivenciar a autoexpressão radical por causa das limitações sociais, mas o Burning Man encoraja esse comportamento ao criar um ambiente onde as pessoas podem “se expressar em qualquer meio que queiram“, disse Mangrum.
“Você sabe, o mundo da arte tradicional é um mercado supermercantilizado e muito controlado, certo? É um mercado de escassez, onde menos artistas significa que aqueles que trabalham ganham mais dinheiro. Nós estamos no extremo oposto desse espectro, onde quanto mais, melhor.”
Embora peças de arte físicas, como retratos e fantasias, sejam comuns nos eventos do Burning Man, há também muitas pessoas, como Wu, que escolhem se expressar servindo a sua comunidade e fornecendo comida por lá.
A expressão baseada em serviços pode ser feita individualmente ou com o seu acampamento, já que os burners podem escolher participar do Burning Man em grupos ou com organizações focadas em objetivos de serviço específicos, como fornecer comida ou transporte.
E esses acampamentos podem ser criativos com sua autoexpressão.
Em um ano, havia um acampamento que plantou um telefone público no meio do deserto. Se você conseguisse encontrar o telefone, poderia fazer uma reserva no acampamento daquele grupo e eles preparariam um jantar elaborado para você, disse Wu, que procurou, mas não encontrou o ilusório telefone público.
“Queremos que as pessoas se sintam criativas. Queremos que elas sintam que a autoexpressão é uma maneira muito acessível de entrar em contato consigo mesmas e com a forma como se conectam com outras pessoas”, disse Goodell.
O Burning Man não é sobre comprar e vender arte. É sobre criá-la juntos. “Então a autoexpressão é feita para acontecer no contexto dos outros”, acrescentou.
Trazendo a autoexpressão radical para o mundo real
Embora Harvey tenha criado uma lista de princípios, eles não são uma lista de verificação que precisa ser seguida de uma maneira específica.
“Eles não são valores, não são ideias, não são sonhos. São apenas modos de existir, modos de ser”, disse Mangrum.
Fora do evento, a autoexpressão radical pode ser feita assumindo riscos, como dizer o que pensa ou compartilhar arte. É comumente vista durante o mês do Orgulho LGBTQIA+, onde as pessoas usam roupas que “tradicionalmente não seriam algo que você poderia usar normalmente”, disse Al-Khouja.
O Burning Man, em sua essência, é um projeto em andamento, disse Mangrum. Ele se expande e muda a cada ano, dependendo de como os burners escolhem participar.
“Nós nunca tivemos uma meta. Ele é uma coisa própria, e nós simplesmente fomos, como Larry gostava de dizer, um experimento, um laboratório, uma placa de Petri, certo? Começamos um experimento em 1986 e ele continua, e fica diferente, e se transforma, e estamos apenas observando como ele cresce”, disse Mangrum.
“Você sabe, as pessoas pensam que os 10 Princípios são como os 10 Mandamentos. Como se Larry os tivesse escrito em uma tábua de pedra e distribuído”, ele acrescentou. “Foi baseado na observação de como ele via as pessoas se reunindo e trabalhando juntas e desfrutando da companhia umas das outras e fazendo coisas ótimas fora do padrão. Então é isso que eu diria sobre isso. É seu próprio objetivo.”
Você não precisa necessariamente participar de um evento do Burning Man para fazer parte do projeto. Desde que você geralmente siga os princípios, use-os para viver sua verdade autêntica e construir uma comunidade (não importa o quão grande seja), então você contribuiu.
“É um sistema educacional. Todo o processo nos ensina sobre nós mesmos. Ele nos ensina sobre liderança. Ele nos ensina, você sabe, como conviver uns com os outros em circunstâncias realmente difíceis”, disse Goodell.