SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um anúncio interrompe “Sabius, os Moleques”, na metade da apresentação, e informa que a peça de Gerald Thomas, de 71 anos, foi escrita apenas até ali, mostrando o método do autor e diretor de criar enquanto as cenas acontecem. A revelação surpreende e diverte o público, em um exemplo do teatro que fala sobre o teatro e, dessa forma, se aproxima da plateia, uma marca de 2025.
Na montagem de “(Um) Ensaio sobre a Cegueira”, do Grupo Galpão, a proximidade é ainda mais íntima. Quatorze pessoas por sessão sobem ao palco a convite do elenco. Vendadas, elas atuam como figurantes, sob a condução dos artistas da companhia mineira.
Além disso, no estilo do teatro épico, os artistas da trupe mineira narram a história e manipulam cenário, luz e trilha sonora diante do público, em uma exposição brechtiana do fazer artístico.
Em outros palcos, veteranos das artes cênicas remexeram os baús de memórias e criaram espetáculos em que dialogam com a plateia por meio de lembranças -e uma boa dose de saudade de outros tempos.
Othon Bastos, 92, escolheu contar suas experiências em “Não Me Entrego, Não”, mural de memórias que estreou no Sesc 14 Bis, na capital paulista, em março, após temporada de sucesso no Rio. “O que adoro fazer é estar em cena. No teatro, você está diretamente ligado ao público, a reação é imediata. Cada sessão é uma estreia, porque o público é diferente”, disse em entrevista à Folha de S.Paulo.
Em “Olhos nos Olhos”, Ana Lúcia Torre, 80, também reúne lembranças para celebrar as seis décadas de carreira, em um diálogo entre vida pessoal e teatral, ao som de Chico Buarque.
Em um encontro de amigos de personalidades distintas, Amir Haddad e Renato Borghi, ambos de 88 anos, dividiram o palco pela primeira vez no Sesc Consolação para falar sobre as dores e as delícias da vida artística.
Entre as revelações estavam as desavenças entre os fundadores do Teatro Oficina, Zé Celso Martinez Corrêa, Borghi e Haddad.
É impagável o trecho em que Borghi lembra o dia em que fez um acordo com Zé Celso para voltarem ao teatro tradicional e deixarem de lado as performances provocativas e libidinosas que o segundo apreciava, e o primeiro rejeitava. Pouco depois da conversa, Borghi percebeu que o pacto não iria adiante -as ousadias teatrais continuavam em cena. “Coloquei minha roupa de rua e fui embora”, contou sobre o fim da parceria.
Em “Senhora dos Afogados”, no Oficina, a ode às artes cênicas aparece de duas formas -na entrega intensa do elenco à tragédia de Nelson Rodrigues e na homenagem a Zé Celso, cuja imagem em um telão é aplaudida de pé em todos os finais de espetáculo.
A parceria entre os discípulos de Zé e a diretora Monique Gardenberg resulta em uma peça que não teme ser vista como “teatrão”, com atores e atrizes que se jogam no chão, rangem os dentes e não escapam do esgar de ódio e medo, como gostava Rodrigues. No estilo do Oficina, eles também ocupam todos os espaços e convidam o público a se entregar.
Já Os Satyros arriscaram apresentar um espetáculo com um avatar no lugar dos atores na “Peça para Salvar o Mundo”, idealizada e escrita por Ivam Cabral e Rodolfo García Vásquez. A própria companhia, no entanto, mostrou que os artistas ainda têm vez em um mundo deslumbrado com a inteligência artificial -o grupo manteve no repertório o clássico “A Casa de Bernarda Alba”, de Federico García Lorca, com 25 atores em cena.
Apesar disso, não foi um ano que passou incólume às crises. No começo do ano, Antonio Araújo, diretor artístico da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp, anunciou que o evento aconteceria pela metade, justamente na comemoração dos dez anos. As dificuldades de apoio financeiro levaram a redução em 50% da programação internacional e nacional.
“Estávamos com a expectativa de que pudesse ser uma edição mais robusta, comemorativa. Mas tivemos uma conjuntura que não foi favorável”, disse.
Em paralelo, companhias como o Grupo XIX de Teatro e a Mungunzá receberam ordens de despejo da Vila Maria Zélia e do espaço ocupado pelo Teatro de Contêiner, no centro de São Paulo, respectivamente. “Elã”, com direção de Isabel Teixeira, foi a peça de despedida deste último espaço após uma curta temporada no Sesc Pompeia. Após um extenso impasse com a prefeitura, a companhia aceitou se mudar para um terreno na rua Helvétia, mas, em dezembro, afirmou não ter recursos para transferir sua estrutura para o novo endereço.
No caso do Teatro Ventoforte, no Parque do Povo, na zona oeste, não houve ameaça e, sim, um ato real -a construção foi demolida pela gestão municipal e motivou uma mobilização dos artistas.
Além disso, os gestores do Teatro Bravos, em Pinheiros, na zona oeste, anunciaram que o espaço encerrará as suas atividades a partir de janeiro do ano que vem e passará a ser usado para eventos e treinamentos de profissionais de saúde.
A discordância voltou a extrapolar as coxias do Theatro Municipal, com uma guerra ideológica que ficou mais em evidência a partir de setembro. Foi quando Ricardo Nunes (MDB) pediu o cancelamento do contrato com a Sustenidos, organização social que gere o teatro, após um funcionário da instituição ter comemorado o assassinato do influenciador trumpista Charles Kirk em sua rede social.
Por trás disso está a insatisfação de alguns vereadores conservadores com a visão da Sustenidos sobre cultura -e, inclusive, até de funcionários do teatro. Entre diversas confusões com os corpos artísticos da casa, uma levou ao afastamento temporário do contrabaixista Brian Fountain, após ele ter criticado, na internet, a produção da ópera “Macbeth”, vaiada por parte do público na estreia.
A prefeitura voltou atrás sobre a rescisão do contrato e um edital foi lançado em dezembro para definir a nova gestão. Mas o certame foi suspenso, na semana passada, pelo Tribunal de Contas do Município, após críticas ao texto. A novela deve continuar desse ponto já nas primeiras semanas de 2026.
Foram turbulências que contrastaram, ao longo do ano, com abertura de novas salas -caso do Teatroiquè, no Butantã; do Teatro Baccarelli, a primeira sala de concerto em Heliópolis, com vocação para receber óperas, balés, filmes e, claro, peças teatrais; e do Teatro Manás, no Bexiga, que também funciona como laboratório de dramaturgia, com experimentações, ensaios e cursos.
Um retrofit e uma mudança de nome trouxeram de volta o antigo Teatro Alfa, em Santo Amaro, na zona sul da capital paulista, agora chamado BTG Pactual Hall, em referência ao banco patrocinador. Algo parecido ocorreu no antigo Teatro Eva Herz, no Conjunto Nacional, reaberto sob o nome de Teatro Youtube, no Conjunto Nacional.
E, na região central de São Paulo, o IBT, o Instituto Brasileiro de Teatro, inaugurou um centro cultural de 7.500 metros quadrados com salas para montagens, ensaios e cursos.
E enquanto o mundo se despediu de Bob Wilson -um dos grandes encenadores das últimas cinco décadas, e que teve forte relação com o Brasil-, outra veterana em cena, Miriam Mehler, celebrou a chegada aos 90 anos em cartaz com a peça “Sob o Céu de Paris” e sintetizou, em uma frase, a esperança que move os profissionais dos palcos. “Eu sempre fico pensando: o que será que vem adiante? Alguma coisa há de vir”.