Doação de órgãos: recusa familiar ainda é desafio para transplantes no país

Mariana Aparecida Silvério Fabiano tinha apenas 14 anos quando viu sua vida mudar de repente. Sempre muito ativa, com o ciclismo e o hipismo como hobbies, a jovem precisou passar longos períodos em hospitais após ter sofrido três hemorragias digestivas e ter sido diagnosticada com colangite biliar primária, uma doença do fígado que causa inflamação, cirrose e insuficiência hepática.

“Eu comecei a ter sintomas de um simples resfriado. Mas quando cheguei em casa, eu tive minha primeira hemorragia digestiva. A partir dali, a minha vida parou”, conta à CNN.

Logo na primeira consulta com um médico, Mariana ouviu que precisaria de um transplante de fígado. “Falaram para mim que eu não iria passar daquela noite, porque tive três hemorragias seguidas”, conta. Isso aconteceu em 2010. Hoje, com 31 anos, Mariana é uma mulher transplantada, mas só recebeu seu novo fígado em 2023.

“Na primeira vez que fui chamada para o transplante, já tinha mais de seis anos que eu estava na lista. Eu cheguei a conhecer a família da doadora, mas naquela noite descobriram que o meu sangue era um tipo raro. E aí começou uma espera maior, porque não era só o órgão [que precisava ser compatível], mas o sangue também”, relembra.

Nesse meio tempo, Mariana precisou abrir mão de todas as atividades de que gostava de fazer e da própria autonomia. “Eu sempre gostei muito de viver, andar a cavalo e fazer atividades ao ar livre. Mas eu tive que parar tudo, porque eu sangrava muito pela boca”, conta. “Nem banho sozinha eu conseguia tomar.”

Sua vida só voltou ao normal tempos depois do transplante: voltou a andar de bicicleta, fazer trilhas e andar a cavalo. Além disso, para quem ouviu, aos 14 anos, que não iria viver por muito tempo, a vida a surpreendeu com outra vida: neste mês, descobriu que está grávida.

Mariana, aos 31 anos, voltou a realizar atividades que gostava de fazer durante a adolescência, graças ao transplante de fígado • Arquivo Pessoal/Mariana Aparecida Silvério
Mariana, aos 31 anos, voltou a realizar atividades que gostava de fazer durante a adolescência, graças ao transplante de fígado • Arquivo Pessoal/Mariana Aparecida Silvério

“Sempre foi meu sonho [ser mãe]. Eu sempre falei muito para Deus que sonhava em ter minha família, e o meu médico disse que eu podia tentar quando estivesse preparada. Mas eu acho que nunca ia estar preparada. São muitos traumas que passamos”, afirma. “Isso só foi possível por conta do ‘sim’ de uma família [em relação à doação de órgãos]. Se não fosse essa família que aceitou doar os órgãos de um ente que partiu, eu não estaria vivendo meu sonho de ser mãe”, finaliza.

Recusa familiar para doação de órgãos ainda é desafio para acelerar fila de transplante

A história de Mariana é apenas uma entre milhares. Em 2024, o Brasil bateu recorde de transplantes realizados no Sistema Único de Saúde (SUS), com mais de 30 mil procedimentos realizados, de acordo com o Ministério da Saúde.

No país, o Instituto do Coração (InCor), o Complexo do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC-USP), o Complexo Hospitalar da Universidade Federal do Ceará (UFC) e o Einstein Hospital Israelita são algumas das referências em transplante de órgãos. Este último, apesar de privado, realiza o procedimento em pacientes do SUS, com 90% dos transplantes sendo feitos no sistema público desde 2002.

No entanto, atualmente há, ainda, 78 mil pessoas aguardando por uma doação de órgão. Os mais demandados em 2024, de acordo com a pasta, foram: rim (42.838), córnea (32.349) e fígado (2.387). Já os órgãos mais transplantadores foram: córnea (17.107), rim (6.320), medula óssea (3.743) e fígado (2.454).

Um dos entraves para o aumento do número de doadores de órgãos no Brasil é a recusa familiar. “Nós temos uma estatística média de 40% de recusa familiar para a doação de órgãos e sabemos que para uma pessoa ser doadora em morte encefálica, ela precisa que um parente de primeiro grau autorize essa doação”, afirma José Eduardo Afonso Jr., coordenador do Programa de Transplantes do Einstein Hospital Israelita à CNN.

No Brasil, a doação de órgãos e tecidos só é realizada após a autorização familiar após o diagnóstico de morte encefálica. Assim, mesmo que uma pessoa tenha dito em vida que gostaria de ser doador, a doação só acontece se a família autorizar. Por isso, é importante conversar com a família ainda em vida para deixar claro o desejo de doar.

Segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), o número de famílias que recusaram doação de órgãos de parentes mortos cresceu em 2023. Em 2019, entre 42% e 44% dos parentes negavam a doação de órgãos de parentes mortos. No primeiro semestre de 2023, o número chegou a 49%.

Para melhorar o cenário, na opinião de Afonso Jr., é preciso investir em educação continuada de médicos e da equipe multidisciplinar que atua em pronto-atendimento e UTI, para saber diagnosticar morte encefálica e os principais processos para notificação dos casos.

“Outro desafio importante é a confiabilidade do sistema de saúde. Muitos brasileiros ainda não têm uma confiança sedimentada de que o sistema de saúde funciona corretamente em relação a isso, e têm receio de autorizar a doação”, afirma.

“Agora consigo dormir normalmente”

Aos 62 anos, o servidor público Alexandre Faro também é um dos milhares de brasileiros que passaram por transplante. Ele foi o primeiro paciente a receber alta após um transplante pulmonar no Hospital São Lucas Copacabana, da Rede Américas.

Diagnosticado com enfisema pulmonar aos 48 anos, após se sentir extremamente cansado mesmo ao realizar atividades simples, como levantar para ir ao banheiro durante seu expediente de trabalho. Mesmo seguindo o tratamento com broncodilatadores, a doença progrediu e ele entrou para a fila de transplante.

“Quando eu fui indicado para outro pneumologista, porque não havia mais o que fazer comigo, fiquei sem chão”, conta à CNN. Faro entrou para a fila em fevereiro e passou pelo procedimento em 12 de junho. “O Dia dos Namorados foi a minha segunda data de nascimento”, afirma.

Alexandre Faro com sua esposa e filha mais nova • Arquivo Pessoal/Alexandre Faro
Alexandre Faro com sua esposa e filha mais nova • Arquivo Pessoal/Alexandre Faro

Faro conta que sua vida agora é outra, mesmo com limitações — afinal, o transplante foi realizado recentemente. “Antes eu dormia com CPAP [um aparelho que ajuda a tratar apneia do sono, fornecendo fluxo constante de ar pressurizado para as vias respiratórias superiores]. Eu dormia igual a um robô. Hoje eu durmo normal. A minha autonomia está aumentando”, conta.

“Ao doar órgãos, você está dando a possibilidade e a expectativa de alguém continuar com a sua existência aqui”, finaliza.

Doação também beneficia crianças

Engana-se quem pensa que transplante de órgãos é algo que só é realizado em pacientes adultos. Muitas crianças também precisam de um órgão novo. Foi o caso de Davi Giló Costa, aos quatro anos. O pequeno nasceu em 2015 com insuficiência renal crônica infantil, uma condição caracterizada pela incapacidade de os rins funcionarem adequadamente, prejudicando a eliminação de resíduos e toxinas do corpo.

Ainda bebê, precisou se mudar para Recife, onde passou dois anos em diálise peritoneal até perder o peritônio — e com ele a chance de seguir naquele tratamento, iniciando a hemodiálise. Sua mãe, Shirlene Giló Sobrinho Costa, de 40 anos, precisou se mudar sozinha com o filho para São Paulo, onde descobriu que estava grávida pela terceira vez.

Em 2019, Davi teve seu primeiro órgão transplantado graças a um doador falecido — o rim de seus pais, apesar de compatíveis, eram muito grandes para ele. Em 2022, sofreu rejeição do rim pelo corpo, precisando passar por um retransplante em 2024, também por um novo doador falecido.

Shirlene e seu filho Davi, que precisou passar por um transplante de rim aos quatro anos • Arquivo Pessoal/Shirlene Giló Sobrinho Costa
Shirlene e seu filho Davi, que precisou passar por um transplante de rim aos quatro anos • Arquivo Pessoal/Shirlene Giló Sobrinho Costa

“O transplante renal em crianças tem particularidades diferentes do transplante em adultos, principalmente quando falamos de crianças pequenas”, afirma Luciana Santis Feltran, coordenadora do Ambulatório de Transplante Renal Pediátrico do Hospital Samaritano Higienópolis, à CNN.

“A cirurgia do transplante é mais delicada e requer cirurgiões muito experientes porque o cirurgião vai precisar ligar veias e artérias que são de menor calibre e a chance de trombose do rim pode ser maior. No pós-operatório precisa haver um cuidado bem minucioso para a criança manter uma pressão boa o suficiente para manter o rim transplantado perfundido”, explica a especialista.

Segundo Feltran, após o transplante infantil é necessário acompanhamento próximo dos médicos. “A criança vai ter uma vida muito parecida a de uma criança sem falência dos rins. Vai poder frequentar escola, passeios, viagens e tudo mais. No entanto, vai sempre precisar manter seu acompanhamento médico e tomar seus medicamentos diariamente”, afirma.

Quem pode doar órgãos?

A doação de órgãos pode ser feita por um doador vivo e por um doador falecido, em caso de morte encefálica. No primeiro caso, podem ser doados um dos rins, parte do fígado, parte da medula ou parte dos pulmões. A compatibilidade sanguínea é necessária em todos os casos.

Para doar órgão em vida, o médico deverá avaliar a história clínica do doador e as doenças prévias. Além disso, o doador precisa ser maior de idade juridicamente capaz, saudável e consentir com a doação, desde que não prejudique a própria saúde. Além disso, pela legislação brasileira, parentes de até quatro graus e cônjuges podem ser doadores. A doação de órgãos de pessoas vivas que não são parentes do receptor é feita mediante autorização judicial.

Já a doação de órgãos e tecidos de pessoas falecidas só é realizada após a autorização familiar. Após ser identificada a morte encefálica (vítimas de traumatismo craniano, AVC ou anóxia), a família é entrevistada por uma equipe de profissionais de saúde para informar sobre o processo de doação e transplantes e solicitar o consentimento para doação.

O doador falecido pode doar órgãos como: rins, coração, pulmão, pâncreas, fígado e intestino; e tecidos: córneas, válvulas, ossos, músculos, tendões, pele, cartilagem, medula óssea, sangue do cordão umbilical, veias e artérias.

“Apesar de ter o maior sistema público de transplante do mundo, o Brasil enfrenta uma imensa heterogeneidade em relação à atividade de doação de órgãos e atividade transplantadora”, afirma Afonso Jr.

“Enquanto nós temos estados com índices de doação parecidos ou melhores que os maiores países do mundo, em termos de efetividade de doação, como o Paraná e Santa Catarina, há estados no Brasil que não têm uma doação de órgão em ano inteiro. A cultura de doação de órgãos precisa ser disseminada, assim como a capacitação de médicos e da equipe multidisciplinar”, finaliza.

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